Nos últimos anos, o Festival de Cannes tem se firmado como uma plataforma de lançamento de filmes ao Oscar. Nunca foi tão claro quanto em 2024, quando Anora, vencedor da Palma de Ouro, consagrou-se com cinco prêmios da Academia. Outros longas da seleção também apareceram na disputa, como Emilia Pérez, A Substância, O Aprendiz, A Semente do Fruto Sagrado. Dos cinco indicados ao Oscar de produção internacional, apenas o vencedor, Ainda Estou Aqui, não saiu de Cannes.
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É um pouco cedo para cravar quais filmes vão ter pernas para chegar à campanha do Oscar 2026, que acontece ainda mais tarde, em 15 de março. Ou seja, temos quase um ano de expectativa até lá.
A verdade é que muitos dos cotados só estreiam no segundo semestre, como Uma Batalha Após a Outra, de Paul Thomas Anderson, Hamnet, de Chloé Zhao, Frankenstein, de Guillermo del Toro, Jay Kelly, de Noah Baumbach, e After the Hunt, de Luca Guadagnino.
Nenhum dos filmes norte-americanos da competição em Cannes 2025 saiu com a força de Anora. Na verdade, nenhuma das produções em língua inglesa foi premiada. Isso não significa que Die My Love, de Lynne Ramsay, The Mastermind, de Kelly Reichardt, ou Eddington, de Ari Aster, vão ser ignorados no Oscar, mas nenhum ganhou um impulso em Cannes.
Mas longas em língua estrangeira, como Sentimental Value, de Joachim Trier, It Was Just an Accident, de Jafar Panahi, e O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho, agora estão na disputa.
Uma competição com curadoria
Mais do que escolher filmes bons, o diretor artístico Thierry Frémaux seleciona obras para conversar com as outras. A competição do 78º Festival de Cannes discutiu memória, trauma intergeracional, epidemia, luto e hereditariedade, resistência ao autoritarismo, masculinidade tóxica, as complexidades da maternidade e o cinema como lugar de resistência, extravasamento, maravilhamento.
O Agente Secreto, por exemplo, tem proximidades com filmes tão diferentes quanto It Was Just an Accident, de Jafar Panahi, Sound of Falling, de Mascha Schilinski, Sentimental Value, de Joachim Trier, e Resurrection, de Bi Gan.
Como It Was Just an Accident, o filme de Kleber Mendonça Filho trata da dificuldade de manter sua integridade e não se deixar levar pelo ódio em períodos de autoritarismo. A mesma discussão aparece em Two Prosecutors, de Sergei Loznitsa, em que um promotor jovem e idealista tenta expor os abusos do stalinismo, e Eagles of the Republic, de Tarki Saleh, em que o maior astro do Egito resiste quando pessoas ligadas ao atual presidente Abdel Fattah El-Sisi quer que ele faça um filme pró-regime.
A proximidade com Sound of Falling e Sentimental Value vem da memória e de como seu apagamento gera traumas que perpassam gerações, seja em uma família, em uma cidade ou mesmo todo um país. As paredes das casas de Sound of Falling e Sentimental Value guardam esses traumas, enquanto em O Agente Secreto eles estão nas ruas, impregnados na alma do Brasil. É preciso preservar a memória, como prega também The History of Sound, em que o romance entre dois homens (interpretados por Paul Mescal e Josh O’Connor) é embalado pelo registro de canções populares transmitidas de geração a geração oralmente. E lembrar do que aconteceu, falar do que se passou, transformar em arte.
O poder do cinema é exaltado em O Agente Secreto, onde o sogro de Marcelo, personagem de Wagner Moura, é o projecionista de uma sala – Alexandre é também o nome do projecionista da Sala São Luiz que Kleber exalta em seu documentário Retratos Fantasmas. Alexandre e o cinema são tanto memórias do diretor e participantes da memória do Recife como também representam a sala de cinema como um lugar em que as pessoas sufocadas podem extravasar seus sentimentos.
Em Sentimental Value, Gustav (Stellan Skarsgaard), o pai que se afastou das filhas, é um diretor de cinema que tenta lidar com os traumas do passado e caminhar para o futuro fazendo um novo filme. Em Eagles of the Republic, o cinema é arma de um governo autoritário. Nouvelle Vague, de Richard Linklater, refaz a filmagem de Acossado, dirigido por Jean-Luc Godard. E Resurrection, de Bi Gan, perpassa a história de cem anos de cinema como forma de resgatar a memória chinesa e celebrar a arte.
O festival também foi de homens contraditórios: sem rumo, mas obstinados, fracos e narcisistas, tóxicos em suma. O Gustav de Sentimental Value vem de outra época e negligenciou as mulheres de sua vida. O JB Mooney vivido por Josh O’Connor em The Mastermind, dirigido por Kelly Reichardt, é um carpinteiro desempregado que pretende ser ladrão de obras de arte, mesmo sem ter competência ou comprometimento. Em O Esquema Fenício, de Wes Anderson, um milionário (Benicio del Toro) tem um plano grandioso e para isso recruta sua filha (Mia Threapleton), com quem tem pouco contato e hoje é freira. Em Eddington, de Ari Aster, o prefeito liberal (Pedro Pascal) é desafiado por um patético xerife antimáscaras (Joaquin Phoenix), em plena pandemia de covid.
Em contraposição a esses homens, há as mães: as adolescentes de Jeunes Mères, dos irmãos Dardenne, a com depressão pós-parto casada com um banana em Die My Love, de Lynne Ramsey, aquela que vê a filha tomando o mesmo caminho do irmão adito em Alpha, de Julia Ducournau. Tanto Alpha quanto Romería falam do trauma societal e familiar gerado pela epidemia de HIV-Aids. E, claro, de luto e hereditariedade também, outros dos temas de O Agente Secreto.
A seleção deste ano mostrou como os cineastas estão absorvendo as preocupações e discussões da realidade e transformando-as em arte.
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