“Amor à primeira vista”. Ou, em nossos tempos de automação e falsificação digital absoluta, seria “amor ao primeiro sinal de humanidade apesar da mediação tecnológica”. Esta é, talvez, a mais discreta das calamidades cotidianas que vive Adam (Patrick Hivon), protagonista de Peak Everything (Amour Apocalypse, Canadá, 2025), filme da cineasta canadense Anne Émond lançado durante a Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes 2025.
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Mas de que outras calamidades cotidianas falamos? Em resumo, todas aquelas trazidas pelas mudanças climáticas: tempestades torrenciais inesperadas, enchentes, secas e uma avalanche de notícias catastróficas no celular, rádio e TV, 24 horas por dia, sete dias por semana.
O gentil Adam, dono de uma pensão para cães, sofre desde ansiedade crônica até depressão e insônia, questões que esconde de seu pai emocionalmente distante (Gilles Renaud), enquanto seu terapeuta limita-se a tratar com remédios. No trabalho, sua funcionária Romy (Élizabeth Mageren) se aproveita de sua docilidade para obter vantagens sexuais.
O único refúgio e alívio de Adam é uma lâmpada triangular, supostamente terapêutica para meditar e acalmar a ansiedade. Porém, uma ligação para a empresa fabricante muda tudo, quando ele atende Tina (Piper Perabo), cuja simpatia e calor facilitam um vínculo imediato. O casal conversa mais vezes por telefone, mas quando uma chamada é interrompida por um terremoto, Adam pega o carro para ir procurá-la. O encontro pessoal trará surpresas inesperadas.
Peak Everything é uma comédia romântica para o Apocalipse
A escolha do título internacional do filme é curiosa: o termo em inglês peak everything se refere ao ponto máximo de algo. No contexto das mudanças climáticas, significa que tudo está chegando ao ponto sem retorno: as variações de temperatura e suas consequências, como o derretimento das calotas polares, ondas de calor, disponibilidade de recursos, secas e fome.
A diretora Anne Émond declarou que sua inspiração veio da própria experiência com ecoansiedade ou solastalgia, gerada pelo vertiginoso desgaste do meio ambiente e pela sensação esmagadora de impotência para remediá-lo. Para ela, o ato criativo foi uma catarse, mas que mantém os pés na realidade da Terra, encontrando equilíbrio: “espero que a estrutura e o tom do filme reflitam um certo sentimento de inquietação. Em algum ponto entre realidade e ficção, drama e comédia, amor e violência”. Para isso, o título original, Amour Apocalypse, parece mais adequado.
O filme também lembra outro clássico onde um protagonista masculino supera múltiplas condições mentais incapacitantes para embarcar numa viagem espontânea que o ajudará a se curar. É como se Embriagado de Amor (Punch-Drunk Love, EUA, 2025), de Paul Thomas Anderson, fosse filtrado pelo apocalipse tangível e iminente de Procura-se um Amigo para o Fim do Mundo (Seeking a Friend for the End of the World, EUA, 2012), de Lorene Scafaria.
Mas Peak Everything apresenta diferenças importantes em relação a esses dois romances ternos e angustiantes. No filme de Scafaria, o fim do mundo não é resultado de uma casualidade cósmica desafortunada e inevitável, mas do androcentrismo consumista que atinge um ponto de inflexão. Adam, nos diálogos, reitera isso constantemente.
A diretora Émond também deixa pistas visuais e nas ações dos personagens. Objetos como a lâmpada triangular, admite Tina, são um golpe. A funcionária Romy vê seu chefe como objeto de consumo: alguém para explorar economicamente ou sexualmente. “Nossas histórias triviais de amor, família, sexo e ciúmes continuam tomando o protagonismo”, diz Émond, apesar do colapso ambiental iminente. Um especismo androcentrista tão absurdo quanto ouvir audiolivros de bem-estar para acalmar uma ansiedade incapacitante: respirar fundo e praticar mindfulness são táticas bobas quando o mundo desmorona.
A comparação com o filme de Paul Thomas Anderson é menos favorável, pois Peak Everything não alcança o mesmo nível de refinamento visual (o que, vale dizer, não significa que deva aspirar ao mesmo artifício da obra protagonizada por Adam Sandler). Émond apresenta um mundo mais sujo e caótico, condizente com a realidade que vivemos. Contudo, salvo alguns trechos oníricos na neve, com simbolismo pertinente, o filme pouco propõe visualmente, deixando o peso para o drama.
Ainda assim, em linha parecida com Embriagado de Amor, a produção de Émond propõe que, apesar da realidade esmagar cada vez mais nossas psiques, a vida tem valor em si mesma pela possibilidade do amor, que, espera-se, possa nos libertar do ego que nos coloca no centro da existência.
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