Marcelo Gomes é um cineasta que gosta de provocar, instigar, fazer pensar. Filmes como Cinema, Aspirinas e Urubus, Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo e Estou Me Guardando Para Quando O Carnaval Chegar trazem questões profundas sobre a natureza humana, misturando sentimentos (e dúvidas) sobre a nossa existência e sua continuidade. Seu novo longa-metragem, o provocativo documentário Criatura da Mente, mantém essa aura ao redor de Marcelo ao falar sobre um dos maiores mistérios da vida: os sonhos.
Estreia dos cinemas desta quinta-feira, 8 de maio, o longa-metragem se agarra nas ideias e nas provocações do cientista Sidarta Riberio para se desenvolver. Ao longo de cerca de 90 minutos, o neurocientista brasileiro explora como os sonhos podem ser uma forma de acesso ao inconsciente — e como isso pode transformar a experiência humana. Em sua investigação, propõe unir os saberes ancestrais dos povos originários e de origem africana no Brasil ao conhecimento científico, além de uma reavaliação científica das experiências com alucinógenos.
“O capitalismo não quer que você sonhe”, resume Marcelo, em entrevista por vídeo ao Filmelier sobre Criaturas da Mente. “Ele quer que você acorde, corra e vá trabalhar. Que sua vida seja útil e que você produza riqueza. Sonho não produz riqueza. Sonho é autoconhecimento”.
A seguir, confira a entrevista completa com o cineasta Marcelo Gomes. Ele fala sobre sonhos, cinema e a forma de encarar o inconsciente.
Como surgiu o desejo de contar essa história e de se aprofundar na questão do sonho e do inconsciente?
Marcelo Gomes: Durante a pandemia, você sabe o que aconteceu, né? As pessoas ou dormiam demais, ou de menos, ou não dormiam, ou sonhavam demais, ou de menos, ou tinham pesadelos. Houve uma modificação no sonhar e no dormir, no sono e no sonhar. Era um momento em que a gente estava mais voltado para nós mesmos, tivemos esse tempo, então essas questões afloraram. Era um momento de muitas dúvidas e incertezas; todo mundo ficou mais fragilizado. Aí tive acesso a um texto do Sidarta Ribeiro, na revista Piauí, e também dialogamos muito com ele. Nesse momento, a Videofilmes apoiou o nosso projeto e fomos até o Sidarta contar essa ideia.
Como eu trabalho com imagens, aquilo era só um mote para falar da importância do sonhar. Mas o filme é maior que isso: ele engloba todo o inconsciente, a psicodelia, os caminhos de acesso a esse inconsciente. Aos poucos, fomos aprendendo com o Sidarta que nossa mente é um iceberg: a pontinha que aparece é o consciente, e tudo que está embaixo é o inconsciente. E sobre o inconsciente ainda se sabe muito pouco.
Então, decidimos embarcar nessa viagem. Um dia, mandei meu filme Maracatu, Maracatus para o Sidarta e ele me disse: “Marcelo, aquilo que você não estava entendendo está no teu filme. Olha as criaturas da mente, o transe.” Então percebi que o caminho era usar meu ofício, o cinema, para acessar essas questões.
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Aí você virou personagem do filme também?
Foi por isso que decidi ser personagem do filme e trazer meus filmes para a discussão, para ajudar o espectador, porque eu estava no lugar dele — o de leigo. Além disso, era importante também trazer o conhecimento ancestral, das raízes indígenas e africanas, para a discussão. Não apenas a ciência potente e dominante, mas outras vozes, outros saberes dialogando com a ciência.
Foi muito bonito entrevistar a Mãe Beth de Oxum, por exemplo, que fala para o Sidarta: “Tem gente dentro da gente.” Era exatamente o que o Sidarta dizia do ponto de vista científico. A Mãe Beth, com o tambor, com o afeto, é quase uma psicanalista para o terreiro. E a Mãe Lu, que nos recebeu com um ritual de cura e falou do sonho e do transe. E o Krenak também, falando da importância do sonho nas aldeias indígenas.
Eu entendi que precisava experimentar também estados alterados de consciência para acessar meu inconsciente. Então, vivi uma experiência nesse sentido. E para mim, esse filme foi uma grande viagem de autoconhecimento.
Me parece que o inconsciente, então, é fundamental para a nossa saúde mental e para nos conhecermos melhor, certo?
Marcelo Gomes: Exato. O inconsciente ajuda a gente na vida prática. Ajudar a acessar o inconsciente é cuidar da nossa saúde mental.
Em ‘Criaturas da Mente’, sonho e inconsciente são, de certa forma, reprimidos na nossa sociedade. Não somos incentivados a pensar os sonhos. Por que você acha que existe essa resistência?
Marcelo Gomes: Eu acho que é porque o capitalismo não quer que você sonhe. Ele quer que você acorde, corra e vá trabalhar. Que sua vida seja útil e que você produza riqueza. O sonho não produz riqueza. O sonho é autoconhecimento. Na arte, temos a poesia, que é fundamental para a vida, mas tem gente que não acessa a poesia. O Borges dizia que o sonho é “uma modesta eternidade pessoal”.
O capitalismo quer que você seja eficiente. Já para os Yanomamis, por exemplo, que são indígenas, o sonho é coletivo. Eles sonham para ajudar a realizar o desejo dos outros. Aqui no Ocidente, o sonho é voltado para o “eu”. E isso faz toda a diferença. Se nos inspirássemos mais nos Yanomamis, talvez o sonho pudesse ser um caminho para construir uma nação melhor, mais coletiva, mais utópica.
Como foi essa dinâmica com o Sidarta Ribeiro, já que ele também aparece como personagem?
Marcelo Gomes: Pouco a pouco, fui conhecendo mais a vida dele por trás das lives. Ele joga capoeira, então a capoeira tinha que estar no filme. É uma pessoa aberta a outros conhecimentos, que conhece o Ailton Krenak — e o Krenak é um grande mestre para ele.
O Sidarta estava muito disponível. Falei para ele: “Vamos colocar você no parangolé!” E ele topou. Filmamos momentos de transe com uma câmera de 16mm de corda, que dava essas imperfeições, essas luzes que criam uma sensação de irrealidade, diferente das câmeras digitais. E rolou um transe mesmo. Ele confiava muito no nosso trabalho. Disse que aprendeu muito com o cinema também. Eu dizia para ele: “Sidarta, cinema é cachoeira.” E ele entendeu isso.
Depois de ‘Criaturas da Mente’, você mudou a forma de enxergar seus sonhos? Mudou a forma de olhar para os seus filmes?
Marcelo Gomes: Sim. Eu aprendi que é fundamental respeitar o ato de sonhar. Tentar entender os sonhos, refletir sobre eles. Anotar os detalhes, que são muito importantes. Curiosamente, meu próximo filme também trata de sonhos. É Dona Luz, projeto que comecei com o Chico Teixeira. Trabalhamos o roteiro juntos e iríamos dirigir juntos, mas o Chico faleceu. Então chamei a Maria Clara Escobar para dirigir comigo. O filme está em andamento. A personagem principal, Dona Luz, sonha — e esse sonho tem um impacto muito forte na vida dela. Talvez seja uma consequência natural desse trabalho em Criaturas da Mente.