Existe algo profundamente subversivo em assistir uma mulher descascar batatas por cinco minutos ininterruptos. Ou observá-la arrumar metodicamente a cama, preparar o café, limpar a mesa da cozinha com movimentos precisos e repetitivos. Em Jeanne Dielman (1975), a cineasta belga Chantal Akerman transformou a banalidade doméstica em manifesto revolucionário, criando uma das obras mais radicais e influentes da história do cinema – que agora, meio século depois, retorna às telas brasileiras nesta quinta-feira, 11, em cópia restaurada para nos lembrar que a verdadeira revolução às vezes acontece em silêncio.
Jeanne Dielman, a anatomia de uma insurreição doméstica
Quando Jeanne Dielman estreou no Festival de Cannes de 1975, causou reações viscerais. Parte da crítica saiu da sala; outra parte reconheceu imediatamente estar diante de algo sem precedentes. Akerman, então com apenas 25 anos, havia criado um filme de três horas e vinte minutos sobre uma viúva de meia-idade (a luminosa Delphine Seyrig) que mantém uma rotina doméstica rigorosamente organizada – incluindo encontros com clientes que a visitam nas tardes de terça e quinta-feira.

O que tornava a obra revolucionária não era apenas seu tema, mas sua linguagem radical. Akerman rejeitou todos os códigos narrativos convencionais: não há trilha sonora, não há close-ups emotivos, não há montagem dramática. A câmera se posiciona na altura dos olhos de Jeanne e observa, com paciência quase etnográfica, cada gesto de sua rotina. É cinema puro. Aquele que existe apenas enquanto experiência temporal, impossível de ser resumido ou acelerado.
“Eu queria filmar como uma mulher, não como alguém que imita um homem filmando”, declarou Akerman anos depois. Essa declaração aparentemente simples esconde uma revolução estética profunda. O cinema dominante havia sido construído sobre o que a teórica Laura Mulvey chamaria de “olhar masculino”. É uma forma de ver e representar que transformava mulheres em objetos de contemplação ou desejo. Akerman desenvolveu uma sintaxe visual completamente diferente: um olhar que não possui, não julga, não hierarquiza.
O tempo como ferramenta política
A genialidade de Jeanne Dielman reside em sua compreensão de que o tempo é uma categoria política. Ao dedicar três horas para mostrar três dias na vida de uma dona de casa, Akerman estava fazendo uma declaração sobre quais vidas merecem ser representadas no cinema e como essa representação deve acontecer. Cada plano dura exatamente o tempo necessário para que a ação mostrada seja completada. Nem mais, nem menos. Não há economia narrativa, não há síntese dramática. Há apenas a duração real da experiência vivida.
Essa escolha temporal funciona como um ato de resistência contra a invisibilidade do trabalho doméstico. Akerman força o espectador a experienciar o peso temporal das tarefas que sustentam a vida cotidiana mas permanecem socialmente desvalorizadas. Descascar batatas deixa de ser um gesto automático para se tornar uma forma de labor que demanda tempo, energia e atenção. A repetição diária dessas ações ganha dimensão existencial.
O filme também revela a violência sutil das estruturas sociais através de sua observação microscópica. Jeanne mantém sua rotina com precisão obsessiva porque qualquer desvio pode significar colapso – financeiro, social, psicológico. Sua vida é construída sobre um equilíbrio precário entre respeitabilidade burguesa e prostituição discreta, entre autonomia econômica e dependência estrutural. Akerman mostra essa tensão sem explicá-la, confiando na inteligência do espectador para decifrar as camadas de significado.
Herança estética de Jeanne Dielman
Cinquenta anos depois, a influência de Jeanne Dielman permeia o cinema contemporâneo de formas que nem sempre reconhecemos imediatamente. Kelly Reichardt, uma das principais herdeiras da tradição iniciada por Akerman, desenvolveu em filmes como Wendy and Lucy (2008) e First Cow (2019) uma linguagem cinematográfica que privilegia a observação sobre a explicação. É o cotidiano sobre o excepcional.
O cinema de Tsai Ming-liang, com seus longos planos fixos e personagens solitários navegando pela modernidade urbana, é impensável sem o precedente estabelecido por Akerman. Mesmo cineastas aparentemente distantes da estética “contemplativa” incorporam a linguagem. É o caso de Gus Van Sant em Elephant ou Celine Sciamma em Retrato de uma Jovem em Chamas. Eles incorporaram elementos da linguagem akermaniana. A recusa do dramatismo fácil, a confiança no poder narrativo do tempo não-editado, a atenção aos rituais que estruturam a experiência humana.
A obra também antecipou debates estéticos que só recentemente ganharam visibilidade crítica. A valorização do “cinema lento” (slow cinema) como alternativa à aceleração midiática contemporânea, a defesa de narrativas centradas em personagens “comuns” em oposição ao excepcionalismo hollywoodiano, a reivindicação de uma temporalidade cinematográfica não subordinada aos ritmos comerciais. Todas essas questões encontram em Jeanne Dielman seu manifesto fundador.
Chantal Akerman, a visionária de Jeanne Dielman
Compreender Jeanne Dielman exige situar a obra no contexto da trajetória artística de Chantal Akerman, uma das cineastas mais singulares e influentes do século XX. Nascida em Bruxelas em 1950, filha de sobreviventes do Holocausto, Akerman desenvolveu desde cedo uma sensibilidade aguçada para as formas sutis de opressão e resistência que permeiam a vida cotidiana.
Sua formação artística combinou influências do cinema experimental americano – especialmente Michael Snow e Stan Brakhage – com a tradição do realismo europeu. Mas Akerman não se contentou em sintetizar influências; ela criou uma linguagem própria que transcendeu categorias estéticas estabelecidas. Seus filmes não são exatamente experimentais nem estritamente narrativos – eles ocupam um território único onde a vanguarda encontra uma forma peculiar de humanismo.
A cineasta desenvolveu ao longo de sua carreira uma reflexão consistente sobre questões de identidade, memória e pertencimento. Em filmes como News from Home (1977) e No Home Movie (2015, sua última obra), ela explorou as tensões entre mobilidade e enraizamento, público e privado, arte e vida. Akerman morreu prematuramente em 2015, aos 65 anos, deixando uma filmografia que continua a influenciar novas gerações de cineastas.

O reconhecimento tardio
Por décadas, Jeanne Dielman permaneceu como filme de culto. Era admirado por cinéfilos e estudado em universidades, mas distante do reconhecimento crítico mainstream. Isso mudou dramaticamente em 2022, quando a obra foi eleita o melhor filme de todos os tempos pela prestigiosa enquete da revista britânica Sight & Sound, destronando Cidadão Kane após sessenta anos de hegemonia.
Esse reconhecimento representa mais que uma revisão crítica individual. Sinaliza uma transformação paradigmática na forma como o cânone cinematográfico é construído. A eleição de Jeanne Dielman reflete o crescimento da influência de críticos e acadêmicos de diferentes backgrounds, especialmente mulheres e pessoas de grupos historicamente sub-representados na crítica cinematográfica tradicional.
A mudança também indica uma reavaliação dos critérios que definem a “grandeza” cinematográfica. Se Cidadão Kane representava o cinema como arte totalizante – dominando técnica, narrativa e performance de forma espetacular –, Jeanne Dielman propõe uma estética da subtração. Afinal, a grandeza emerge da capacidade de encontrar o extraordinário no ordinário, o universal no específico, o político no pessoal.
Um cinema para o futuro
Jeanne Dielman não é apenas um filme histórico que merece preservação museológica. É uma obra viva. O filme continua a gerar novas interpretações e a inspirar novas formas de fazer cinema. Sua chegada restaurada às telas brasileiras representa uma oportunidade rara de engajamento com uma linguagem cinematográfica que permanece radical meio século depois de sua criação.
Para espectadores dispostos ao desafio, o filme oferece uma experiência transformadora. Afinal, expande as possibilidades de compreensão sobre o que o cinema pode ser e fazer. Jeanne Dielman propõe o cinema como ferramenta de investigação psicológica, social e existencial. É uma arte capaz de revelar dimensões da experiência humana que permanecem invisíveis para outras formas de representação.
Cinquenta anos depois, a revolução silenciosa de Chantal Akerman continua a ecoar. O filme lembra que as transformações mais profundas às vezes acontecem não através do espetáculo, mas da observação atenta. Não através do drama, mas da contemplação paciente do que sempre esteve diante de nossos olhos, esperando para ser verdadeiramente visto.









