O cinema brasileiro ganha mais um representante da chamada “nova geração pernambucana” com Seu Cavalcanti, segundo longa-metragem de Leonardo Lacca que chega aos cinemas nesta quinta-feira, 11. Mas este não é um filme qualquer: trata-se de um projeto que atravessou governos, crises políticas e mudanças sociais, registrando inadvertidamente os últimos 20 anos da história nacional através do olhar de um nonagenário carismático.
Iniciado em 2003 com equipamentos da Universidade Federal de Pernambuco – uma conquista das políticas de democratização do ensino superior dos primeiros anos do governo Lula -, o filme documenta não apenas a trajetória pessoal de Seu Cavalcanti, mas também as transformações de uma família brasileira típica. “É um filme que registra de uma maneira indireta todo o país”, observa Lacca, que viu seu projeto evoluir junto com as mudanças políticas nacionais.

Seu Cavalcanti: um termômetro social
A obra funciona como um termômetro social involuntário. Há cenas envolvendo a eleição de Dilma Rousseff, momentos que captam o otimismo dos anos de crescimento econômico e, nas entrelinhas, os prenúncios da polarização que dividiria famílias brasileiras na década seguinte. “Minha família, em algum momento, como todas as famílias no Brasil, ficaram um pouco polarizadas nessa questão política. E eu filmei antes disso”, revela o diretor.
O protagonista, avô do realizador, emerge como figura emblemática de uma geração que assistiu às grandes transformações do século XXI brasileiro. Ex-policial, homem conservador pela idade e formação, surpreende ao demonstrar admiração por uma presidente mulher – “uma mulher mandando”, como diz no filme, referindo-se a Dilma. Essas contradições e nuances fazem de Seu Cavalcanti um personagem complexo, longe dos estereótipos geracionais.
O processo de produção reflete a própria precariedade e persistência do cinema nacional. Começou como exercício estudantil com câmera emprestada, passou por financiamento de editais públicos e só ganhou estrutura profissional quando produtores como Kleber Mendonça Filho e Emilie Lesclaux se interessaram pelo projeto. A trajetória espelha a de muitos realizadores brasileiros que dependem de políticas públicas e parcerias para viabilizar seus filmes.
A montagem, realizada pelos irmãos Pretti ao longo de uma década, transformou 20 horas iniciais de material bruto em quase 60 horas de arquivo. Esse processo artesanal, com encontros esporádicos mas intensos, representa uma forma alternativa de fazer cinema, distante dos prazos industriais e próxima da maturação natural das ideias. “A montagem foi um processo lento, natural, livre e de muita descoberta”, define Lacca.
Antes, durante e depois
A morte do protagonista em 2016, no auge da crise política, marca uma virada narrativa que o filme soube incorporar. A ausência se torna presença através da técnica cinematográfica, com dublagens feitas pelo próprio Seu Cavalcanti em estúdio conferindo qualidade sonora profissional às gravações domésticas. A pós-produção de som, conduzida por Marina Silva, Carlos Montenegro e Roberto Espinoza, eleva o material caseiro ao patamar de cinema de sala.
Seu Cavalcanti representa mais que um filme familiar: é documento de uma época, testemunho de resistência cultural e exemplo de como o cinema pode florescer mesmo em condições adversas. Ao transformar o cotidiano de um avô em narrativa universal, Lacca demonstra que as histórias mais potentes nem sempre nascem de grandes orçamentos. Nascem, na verdade, da paciência de quem sabe reconhecer a grandeza no comum. O filme estreia em momento de retomada do cinema nacional, após anos de desmonte das políticas culturais, carregando a força simbólica de um projeto que atravessou duas décadas para chegar às telas.