Leo Fife (Richard Gere) está morrendo. Prostrado em uma cama quase sem vida, o cineasta, documentarista famoso, não tem mais saída. O câncer está comendo ele por dentro. A decisão, porém, não é repouso ou encontrar seus entes queridos para se despedir. Leonard decide aceitar o convite de ex-alunos para dar um depoimento a um documentário que estão fazendo justamente sobre a vida dele, esse cineasta moribundo.
Esse é o ponto de partida de Oh, Canadá, estranho e provocativo filme do cineasta Paul Schrader que chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, 5. Ao contrário do que pode parecer em um primeiro momento, o longa-metragem não está interessado em ser a cinebiografia de um personagem fictício, como Tár, ou a reconstrução calculada, mesmo que emocionante, de alguém morrendo como Peixe Grande e Suas Maravilhosas Histórias.
Oh, Canadá, na verdade, é um mosaico estranho e propositadamente confuso das lembranças de Fife. E, como acontece com a memória de qualquer pessoa, tudo é confuso. Situações são contadas de maneira desordenada, rostos são trocados, narrativas começam e acabam sem grande explicação. O roteiro de Schrader, inspirado no livro Foregone, de Russell Banks, não quer consertar isso: quer, na verdade, que o filme siga o devaneio.
Oh, Canadá: memórias em fragmentos
Ao contrário de um flashback banal, como é de praxe em qualquer cinema de memórias ou biografias, este novo longa-metragem nos entrega uma reflexão não sobre o homem em si — Fife, afinal, se revela um canalha de marca maior. É, enfim, uma narrativa sobre o que é a memória, a idealização e como a vida se encaixa nesse tempo que sequer conseguimos colocar uma ordem coerente. A vida apenas existe e ninguém é capaz de lembrar de tudo.
Parece um olhar melancólico de Schrader, aos 78 anos, sobre o futuro. No momento mais revelador não apenas de Fife, mas também do próprio Paul, o documentarista está no banheiro tentando entender o que o fez aceitar dar esse depoimento. É aí que vem a resposta: não há mais nada a se ancorar no futuro, apenas no passado. A câmera funciona como uma confissão e assim como o amigo de Leo encerrou uma viagem pelos EUA no passado se confessando com um padre, o diretor agora quer se confessar com o cinema.

É bonita e melancólica, assim, a forma que Schrader encara o fim, a morte, a memória, a vida. Tudo é um borrão que tentam dar ordem, nunca encontrando, de fato, o fio da meada. O diretor do documentário é o psicanalista (talvez Freud, nome tão citado por Fife), enquanto o entrevistado é o paciente tentando ordenar sua vida. É, enfim, impossível.
Protagonista em análise
Como é de praxe no cinema de Schrader, roteirista do clássico Taxi Driver e diretor de obras geniais como Fé Corrompida e Jardim dos Desejos, o foco aqui é falar sobre um homem atormentado e que está passando por um momento intenso de quebra de rotina, de vida, de expectativa. Ethan Hawke foi o padre com fé abalada, Joel Edgerton foi o jardineiro nazista que tenta deixar o passado pra trás, De Niro foi o taxista em crise psicótica e, agora, Gere é o homem mau que enganou a todos durante sua vida e, agora, na morte, quer se revelar.
Com isso, Richard Gere se encontra com seu melhor papel desde o açucarado Sempre ao Seu Lado, de 2009. É intenso, é sem vaidades, é fora da caixinha. É o ator despido de qualquer pretensão, apenas embarcando na ideia de um homem se deparando com a vida. Jacob Elordi, a versão jovem de Fife, se sai bem, mas é ofuscado pela força do veterano. Por fim, também há uma boa atuação de Uma Thurman.

Melancolia dosada de Oh, Canadá
No final, Oh, Canadá perde um bocado de força. Após boas reflexões, fica a sensação de que não houve clareza de como terminar esse filme de memórias entrecortadas. Pensando nas produções recentes de Schrader, é uma queda considerável. Fé Corrompida termina em nota altíssima. Jardim dos Desejos muda tudo na última frase, literalmente. Oh, Canadá até tenta, mostrando esse homem covarde tentando fugir até da morte, mas apenas não consegue acompanhar o ápice narrativo de antes.
Termina numa nota levemente amarga, menor. Mas ainda assim, funciona. Schrader, que merecia holofotes como outros veteranos como Scorsese e Eastwood, se prova mais uma vez como uma voz ousada. Não se conforma com mais do mesmo. Aos 78 anos, encara morte, memórias, mentiras, a idealização — dele e dos outros. O resultado é um filme maduro. Afinal, ainda que mal acabado, nos tira da zona de conforto. De quebra, ainda nos brinda com uma das grandes atuações do ano.