Grace Pudel (Sarah Snook) carrega consigo uma obsessão peculiar: colecionar caracóis ornamentais. A jovem australiana dos anos 1970 desenvolve essa fixação após uma série de tragédias familiares que a separam de seu irmão gêmeo Gilbert (Kodi Smit-McPhee). Isso a lança em uma espiral de solidão e relacionamentos destrutivos. Em seu quarto filme, Adam Elliot transforma essa premissa simples em uma meditação profunda sobre como o sofrimento.
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Esta é a proposta central de Memórias de um Caracol, que estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, 5, após conquistar inclusive uma indicação ao Oscar 2025 de Melhor Animação. No entanto, o filme desafia expectativas desde o início: não é apenas um drama sobre superação pessoal, mas uma reflexão sobre os mecanismos da cura emocional.
Memórias de um Caracol: Melancolia como ponto de partida
Elliot constrói deliberadamente um primeiro ato devastador na vida de Grace. As desgraças se acumulam de forma quase implacável – morte do pai, separação dos irmãos, adoção traumática, relacionamentos abusivos. O diretor não poupa o espectador dessa avalanche de infortúnios, numa abordagem emocionalmente exaustiva, mas que serve a um propósito narrativo.
Diferentemente dos dramas convencionais que suavizam o sofrimento com momentos de alívio, Memórias de um Caracol abraça a natureza acumulativa do trauma. Grace não enfrenta apenas uma adversidade, mas uma sequência de perdas que moldam sua personalidade introvertida e sua necessidade compulsiva de colecionar objetos. A metáfora dos caracóis funciona como reflexão poética sobre a inevitabilidade do progresso pessoal. Afinal, são criaturas ensimesmadas, fechadas dentro de si e que não se movem para trás.
A abordagem parece espelhar a própria experiência de Elliot, que baseou elementos da história em sua vida pessoal. Na animação artesanal, cada textura trabalhada à mão reflete o cuidado obsessivo que Grace dedica a seus objetos, criando uma materialidade única para as emoções retratadas.

Sarah Snook e a voz da introversão
Como é característico no universo de Elliot (de Mary e Max e Harvie Krumpet) encontramos novamente protagonistas marginalizados em busca de conexão. Se nos filmes anteriores tínhamos personagens excêntricos mas resilientes, agora Snook interpreta uma mulher genuinamente traumatizada que precisa reconstruir sua capacidade de confiar.
Snook entrega sua performance mais impactante desde Succession — mesmo não dando as caras aqui. Sua narração em primeira pessoa guia o espectador através das memórias com intimidade que torna cada revelação genuinamente tocante. Smit-McPhee oferece um trabalho sensível como em Ataque dos Cães, embora sua presença seja limitada pela estrutura narrativa. Jacki Weaver completa o elenco como a mentora excêntrica Pinky, trazendo leveza necessária aos momentos finais.
Transformação em tom maior
Infelizmente, Memórias de um Caracol acelera excessivamente na reta final. Após estabelecer o peso traumático de forma controlada, Elliot parece incerto sobre como seguir a transição da melancolia profunda para a aceitação. Enquanto Mary e Max constrói gradualmente a amizade entre os protagonistas, este novo trabalho tenta uma resolução apresada no final. Assim, é como se toda a história fosse suave e o final, truncado.
O resultado é uma conclusão que, embora emocionalmente satisfatória, soa ligeiramente apressada considerando a densidade estabelecida anteriormente.

Ainda assim, Memórias de um Caracol funciona como demonstração da maestria técnica de Elliot. O diretor, que merece reconhecimento como um dos mais importantes animadores contemporâneos, mais uma vez recusa fórmulas fáceis. Aos 53 anos, encara temas universais. Trauma, solidão, resiliência. Tudo isso com a maturidade artística de quem domina completamente sua linguagem visual.
Enfim, o resultado é um filme imperfeito, mas corajoso, que recompensa a paciência do espectador com uma experiência genuinamente humana. Elliot continua provando que a animação stop motion não perdeu sua capacidade de emocionar.