
‘A Meia-Irmã Feia’ e o feminismo no cinema de terror
O terror sempre foi um espelho distorcido da realidade. E, quando falamos sobre ser mulher, essa distorção quase nem é necessária: o medo já está em viver. O cinema de horror, mais especificamente nos últimos anos, tem explorado o terror que é ser mulher em uma sociedade que controla, vigia, pune e silencia. Conheça a trama do novo filme body horror A Meia-Irmã Feia e outros filmes que abordam o terror feminista. Do direito reprodutivo ao julgamento moral, da maternidade compulsória ao fundamentalismo religioso, o gênero encontrou no corpo feminino um espaço político e escancarou que o verdadeiro monstro da história é o patriarcado que o assola e assusta. Leia mais: O legado sanguinolento de O Massacre da Serra Elétrica: uma jornada através do terror O que define o terror feminista? Apesar de ser um dos gêneros em que mulheres têm mais tempo de tela, o terror historicamente não ofereceu a elas narrativas que refletissem sua experiência real. Muitas protagonistas foram moldadas para servir ao male gaze: corpos para serem observados, punidos, sacrificados. Mas, em contraste a esse repertório majoritariamente dirigido por homens, emergem obras que reconfiguram o olhar — o chamado terror feminista. Aqui, o horror serve como denúncia e reflexão. Essas histórias se apropriam da linguagem do gênero para expor e confrontar a misoginia estrutural, o controle dos corpos, a violência doméstica, a histerização da mulher e a desigualdade cotidiana. Ao invés de vítimas passivas, vemos personagens que resistem, se vingam, reivindicam o direito de serem complexas, e mais primal, de sobreviverem. Esses filmes além de colocarem mulheres no centro da trama, desestabilizam o olhar reducionista às suas vivências. A evolução da “Scream Queen” à “Final Girl” Em Um Tiro na Noite (Blow Out, 1978), de Brian De Palma, o protagonista vivido por John Travolta busca o grito feminino perfeito para compor seu próximo filme de terror de baixo orçamento. Embora o filme não trate necessariamente dessa busca, mas sim de barulhos internos mais inquietantes do personagem, ele revela um pano de fundo interessante sobre o termo Scream Girls (ou Scream Queens). O arquétipo surgiu ainda no cinema mudo, nos anos 1930, mas só se popularizou décadas depois, permanecendo relevante até os dias atuais, geralmente associado a mulheres com características marcantes e peculiares. O grito como espetáculo: as “Scream Queens” e o “male gaze” A sobrevivente “pura”: o nascimento da “Final Girl” Como observa Kaplan (1995) em seu livro intitulado “A mulher e o cinema: os dois lados da câmera”, as primeiras representações femininas no terror eram moldadas por um olhar masculino: mulheres eram desejáveis, frágeis e, quando ousavam romper esse script, eram punidas. A Scream Girl era o corpo que sofria, corria e morria — como exemplifica o icônico grito em Psicose (1960). De vítima a estrategista: a subversão do arquétipo Nos anos 1980, surge a Final Girl, conceito desenvolvido por Carol J. Clover em Men, Women, and Chainsaws. Diferente da Scream Girl, a sobrevivente não morre, mas vive — por ser moralmente “pura”: não bebe, não transa, é considerada superior às outras mulheres e, assim, premiada pela docilidade. Aos poucos, o gênero se reconfigurou, dando mais camadas a essas personagens. Nancy, em A Hora do Pesadelo, e Ellen Ripley, em Alien, passam de vítimas a estrategistas. Nos anos 1990, Sidney Prescott, em Pânico, se torna um símbolo cultural ao sobreviver não por moralidade, mas por resiliência e inteligência. No terror contemporâneo, a Final Girl não existe apenas para ser admirada — ela sobrevive porque luta, falha, enlouquece, mata. Não é uma heroína plana; é uma mulher complexa, ambígua, inquietante, como Pearl, interpretada com intensidade por Mia Goth. Hoje, a Final Girl pode ser vilã, vítima ou ambas. O viés racial e a nova sobrevivência pela sororidade Apesar dos avanços, o padrão ainda é racializado: durante décadas, personagens negras e latinas eram as primeiras a morrer, reduzidas a símbolos descartáveis dentro da narrativa. Obras recentes como Pisque Duas Vezes (Blink Twice, 2024), Nós (Us, 2019), A Lenda de Candyman (2021) e Noites Brutais (Barbarian, 2022) rompem com essa lógica, trazendo protagonistas que enfrentam não apenas o terror sobrenatural, mas também o terror estrutural do racismo e do colonialismo. Outro movimento importante tem ganhado força: a descentralização da sobrevivência. Se antes apenas uma Final Girl era permitida no fim, agora vemos narrativas em que duas mulheres sobrevivem juntas, compartilhando o trauma, estratégia e a resistência. Essa mudança aparece em obras recentes como Pisque Duas Vezes (2024), Morte, Morte, Morte (2022) e A Rua do Medo (2021), onde a sobrevivência não é mais mérito individual, mas um gesto de sororidade. Confira: Canais FAST do Filmelier – filmes dublados e gratuitos na sua TV As pioneiras que subverteram o gênero Quando pensamos em horror feminista, muitas vezes olhamos apenas para o presente, esquecendo que mulheres já estavam reinventando o gênero décadas atrás, mesmo sem reconhecimento crítico. A Vampira de Veludo (1971) e o desejo feminino Nos anos 1970, Stephanie Rothman subverteu o erotismo vampírico em A Vampira de Veludo (The Velvet Vampire, 1971), criando uma vampira que não é fetiche para o olhar masculino, mas símbolo de desejo feminino autônomo — e, por isso, vista como monstruosa. Vingança Macabra (1985) e a voz silenciada Já nos anos 1980, Roberta Findlay explorou o terror sobrenatural como ferramenta de denúncia social em Vingança Macabra (The Oracle, 1985), onde a voz feminina — literalmente vinda do além — insiste em ser ouvida apesar das tentativas de silenciamento. Ambas filmaram a mulher não como vítima ou espetáculo, mas como corpo político, desejante e perigoso. O horror de ser mulher em um mundo patriarcal: os temas centrais do terror feminista contemporâneo “Body horror”: o corpo feminino como campo de batalha Há séculos, o corpo das mulheres é vigiado, corrigido, silenciado: como deve parecer, como deve se mover, o que pode ou não desejar. O cinema de terror, especialmente o body horror (horror corporal), expõe essas violências tornando-as carne, sangue e metamorfose. A filmografia de Julia Ducournau, nos presenteia com títulos interessantes como Junior (2011), Raw (2016) e











