Há histórias que nascem da necessidade urgente de não esquecer. A Procura de Martina, dirigido pela carioca Márcia Faria e protagonizado pela veterana Mercedes Morán, é uma dessas narrativas — daquelas que usam a intimidade de uma mulher para iluminar feridas coletivas que ainda sangram.
O longa, estreia de 5 de junho, constrói uma ponte sensível entre dois países marcados por ditaduras brutais. Assim, transforma a busca pessoal de uma avó argentina em reflexão sobre como lidamos com nossas memórias mais dolorosas.
A Procura de Martina: uma jornada pelo tempo
A trama acompanha Martina (Mercedes Morán), uma argentina que enfrenta uma corrida contra o tempo duplamente cruel. Afinal, ela é diagnosticada com Alzheimer e precisa encontrar seu neto desaparecido durante a ditadura militar. Tudo isso antes que a doença comprometa definitivamente sua lucidez.
O roteiro, assinado por Márcia Faria em parceria com Gabriela Amaral Almeida, foi inspirado nas histórias reais das Avós da Praça de Maio, mulheres que há décadas buscam pelos netos sequestrados durante o regime militar argentino.
“O que mais me atraiu foi trabalhar com a Márcia Faria, que eu já conhecia por ter trabalhado com ela [como assistente de direção] em Diários de Motocicleta, de Walter Salles“, revela Mercedes Morán em entrevista ao Filmelier. “Fiquei feliz em saber que Las Abuelas, uma associação que tenho muito apreço, foi uma inspiração para uma diretora não-argentina, que as conquistas dessas mulheres cruzaram as fronteiras do meu país e inspiraram uma diretora brasileira”.
O desafio da representação
A construção da personagem Martina apresentou desafios únicos, especialmente na representação respeitosa dos primeiros estágios do Alzheimer.
Como explica a diretora Márcia Faria ao Filmelier, a busca foi por uma representação fiel e respeitosa. “Foi um grande desafio, sobretudo porque A Procura de Martina retrata um momento da doença em que os efeitos do Alzheimer são mais difíceis de identificar”, explica. “Há oscilações entre presença e ausência, lapsos de memória intercalados com momentos de lucidez”.

encontrou na precisão técnica e na sensibilidade humana o caminho para construir uma personagem longe dos estereótipos. “A verdade é que foi um desafio enorme encarnar uma dessas mulheres, que já são protagonistas de um drama por si só”, conta a atriz. “Somado a isso, o drama de uma doença que ameaça a memória era complexo e, ao mesmo tempo, muito motivador”.
Memória como resistência
O filme transcende o drama pessoal para abordar questões históricas profundas. Filmado no Rio, A Procura de Martina propõe um diálogo entre Brasil e Argentina. É sobre como cada país lidou com seu passado ditatorial.
“A história da América Latina é marcada por ditaduras violentas, silenciamentos e apagamentos”, observa Márcia. “O filme propõe um espelhamento entre Brasil e Argentina: dois países que viveram ditaduras brutais em tempos semelhantes, mas que lidaram de formas muito diferentes com esse legado”.
Para Mercedes, essa reflexão ganha contornos ainda mais amplos: “Acredito na importância de revisitar esses passados para construir um presente e um futuro mais felizes. Me parece que todos, ou a maioria dos países latino-americanos, compartilham um legado de um passado que foi muito doloroso e muito sombrio, do qual muitos governos tentaram nos fazer esquecer”.
Arte nascida da experiência
O projeto de Márcia Faria ganhou camadas ainda mais profundas quando a vida pessoal se entrelaçou com a ficção. “Logo depois que começamos a escrever o roteiro, minha mãe foi diagnosticada com Alzheimer”, revela a diretora. “Já são mais de dez anos convivendo com a doença. Durante esse tempo, acompanhei de perto a luta dela para se agarrar às memórias, para não desaparecer”.
Essa experiência íntima conferiu ao filme uma autenticidade que Mercedes Morán reconheceu imediatamente. “Descobri, depois de ler o roteiro, que o Alzheimer era uma questão pessoal para Márcia. Assim, a metáfora do esquecimento, de como falar sobre a falta de memória, cobriu um território muito pessoal para a diretora. Ao mesmo tempo, lançou luz sobre uma questão social muito importante”.

Para contar essa história, entre Alzheimer e Ditadura, o filme reúne um elenco feminino notável, com as argentinas Adriana Aizenberg e Cristina Banegas interpretando as amigas de Martina, também integrantes das Avós da Praça de Maio. Do lado brasileiro, Luciana Paes e Carla Ribas completam o quadro de personagens.
“Acho que essa forma de interpretar as mulheres, algumas delas um pouco mais velhas do que eu, me dá a oportunidade de espiar com a minha cabeça um futuro próximo, que espero navegar com lucidez”, reflete Mercedes Morán. “Acho que uma das coisas que reflete a lucidez é a capacidade de preparar pessoas para seguir o nosso caminho”.
Reconhecimento internacional
A coprodução Brasil-Uruguai, realizada pelas produtoras Kromaki, Ipanema Filmes, Básico e Criatura, já coleciona prêmios importantes. O filme conquistou o prêmio de Melhor Filme Ibero-americano no Festival de Mar del Plata. Também levou o Prêmio do Público no Festival do Uruguai, além de ter passado pelo Festival do Rio e pela Mostra de São Paulo.
A versão final teve uma primeira exibição exclusiva para a associação das Avós da Praça de Maio. Fealizada no auditório da sede em Buenos Aires, com a presença da presidente da organização, Estela de Carlotto.
Agora, para Márcia, o lançamento no Brasil representa uma oportunidade especial de diálogo. “Minha expectativa com o lançamento no Brasil é que A Procura de Martina também provoque esse tipo de encontro. Quero que as pessoas se permitam refletir sobre o valor da memória, tanto a individual quanto a coletiva”, diz.