A Netflix aposta mais uma vez no audiovisual brasileiro com Pssica, minissérie que estreia nesta quarta-feira, 20 de agosto, e promete levar o público a uma jornada intensa pelos rios da Amazônia atlântica. Dirigida por Quico Meirelles, com um episódio sob direção e produção de Fernando Meirelles (indicado ao Oscar por Cidade de Deus), a produção de quatro episódios entrelaça drama, ação e elementos de realismo fantástico para abordar temas urgentes como tráfico humano, violência e abandono governamental.
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Filmada em Belém, no Pará, a série acompanha três personagens cujas trajetórias se cruzam de forma inesperada: Janalice (Domithila Cattete), uma jovem raptada pelo tráfico humano; Preá (Lucas Galvino), que precisa aceitar seu destino como chefe de uma gangue de “ratos d’água” – criminosos que atuam nos rios da região; e Mariangel (Marleyda Soto), uma mãe colombiana que busca justiça pela morte de sua família.

Em Pssica, literatura paraense ganha vida na tela
Baseada no livro homônimo de Edir Augusto, Pssica representa uma homenagem à literatura paraense e uma tentativa de dar voz a realidades frequentemente silenciadas. O roteiro, assinado por Bráulio Mantovani (também indicado ao Oscar por Cidade de Deus), Fernando Garrido e Stephanie Degreas, mantém a estrutura fragmentária da obra original.
“O livro do Edir Augusto realmente proporciona isso para a gente, por ser algo que não tem travessão de fala dos personagens, aspas, não. É acontecimento, ponto, acontecimento, ponto, acontecimento, ponto”, explica Domithila Cattete, que interpreta Janalice, em entrevista ao Filmelier. “E você vai vendo a série e parece que você também está lendo o livro”.
A narrativa se constrói em torno da ideia de “pssica” – uma maldição que os personagens acreditam ter sido lançada sobre eles. Mais do que um elemento místico, o conceito funciona como metáfora para as circunstâncias que aprisionam os protagonistas em ciclos de violência e desespero.
Personagens no limite da sobrevivência
Um dos aspectos mais marcantes da série é como cada personagem navega por dilemas morais complexos em situações extremas. Lucas Galvino, que interpreta Preá, destaca a dificuldade de encontrar humanidade em um papel tão distante de sua realidade pessoal. “O Preá é muito distante de mim, de pensar, ouvindo a Dom me falar da proximidade com o Janalissa”, confessa o ator. “O Preá tem uma realidade distante de mim, só que tem uma busca dele, que talvez eu me encontrei no meio desse processo solitário e coletivo”.
Para Galvino, a construção do personagem passou por compreender sua condição de pessoa “desesperançada e solitária”, que vê o mundo “de uma forma meio encurralada, que não tem muitas escolhas”. O processo criativo envolveu encontrar pontos de contato humanos mesmo em um contexto de violência extrema.
Já Marleyda Soto, que dá vida à colombiana Mariangel, ressalta que sua personagem transcende o estereótipo da vingança para revelar o instinto de proteção maternal em circunstâncias extremas. “O tema da vingança é um tema importante dentro da narrativa de Maria Angel, mas não é a coluna vertebral que motiva o personagem”, esclarece a atriz colombiana. “O personagem está buscando o que qualquer mãe buscaria se encontrasse nesse tipo de circunstâncias. Encontrar uma resposta à sua dor”.
Geografia amazonense de Pssica
Um dos elementos mais distintivos de Pssica é como a geografia amazônica se torna protagonista da narrativa. A série explora não apenas as paisagens exuberantes da região, mas também sua complexidade social e política, retratando comunidades ribeirinhas e o impacto do movimento das marés na vida dos personagens.
“A geografia de Belém e arredores Marajó é algo único. As paisagens são coisas que só a Amazônia tem”, observa Lucas Galvino. O ator confessa ter ficado “maravilhado” ao entender “o movimento da cidade a partir do rio”, descobrindo uma realidade que, apesar de geograficamente próxima de seu Ceará natal, parecia “outra realidade”.

Mistura de gêneros e estilos
Pssica não se limita a um único registro narrativo, transitando entre drama intenso, sequências de ação e elementos de realismo fantástico. Essa versatilidade estilística reflete tanto a complexidade da obra literária original quanto as múltiplas camadas dos conflitos retratados.
“Cada vida de cada personagem está atravessada também por diferentes gêneros”, explica Marleyda Soto. “Vai haver ação, vai haver risco, é vertiginoso, mas também depois voltamos ao dramático que é tão potente, porque é o que move os personagens”.
Para os atores, essa multiplicidade representa um desafio criativo estimulante. “Como atriz e atores, é muito gratificante para a gente conseguir fazer um papel com muitas nuances de emoções, mas também com muitos estilos”, complementa Domithila.
Urgência social e visibilidade internacional
Além do valor artístico, Pssica carrega uma dimensão de responsabilidade social ao abordar temas frequentemente negligenciados pelo poder público e pela mídia. A série se propõe a romper o que Lucas Galvino chama de “tabu” em torno de assuntos relacionados ao tráfico humano e à exploração infantil.
“Eu sinto que existe um tabu. Existe um tipo de tapa-sol, uma peneira com esse assunto e as pessoas têm medo de falar”, observa o ator. “A gente passou um tempo na Ilha do Marajó e isso era visível, como existe uma penumbra sobre esse assunto”.
Pssica se apresenta como uma obra que não busca o conforto do espectador, mas sim o despertar de consciências para realidades muitas vezes invisibilizadas. A série aposta no poder transformador do incômodo, na capacidade da arte de forçar conversas difíceis mas necessárias.
“Há um receio de se falar sobre, há um medo de se assistir sobre, porque pode ser pesado e pode incomodar”, reconhece Domithila. “Mas esse incômodo é o que vai fazer a vida dessas pessoas vulneráveis mudarem”.