Cinquenta anos após sua realização, Iracema: Uma Transa Amazônica volta aos cinemas brasileiros com restauração completa em 4K, revelando com nitidez assustadora que os problemas denunciados pelo filme não apenas persistem, mas se agravaram. O longa-metragem de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, censurado pela ditadura militar na década de 1970, permanece como um dos mais importantes documentos cinematográficos sobre a devastação amazônica e suas consequências sociais.
A restauração, realizada pelo Instituto Moreira Salles, foi possível graças à descoberta dos negativos originais do filme na Alemanha, onde havia sido produzido para um programa televisivo. O resultado é impressionante: as imagens em 16mm ganham uma qualidade técnica que permite ao espectador contemporâneo mergulhar completamente na narrativa que mescla documentário e ficção, acompanhando o encontro entre uma jovem indígena e um caminhoneiro da Transamazônica.

“É como se o filme fosse rodado hoje”, celebra Bodanzky sobre o trabalho de restauração comandado por Alice Andrade, que já havia se especializado no restauro da obra de Joaquim Pedro de Andrade. O cineasta, que conversou com o Filmelier, não esconde a satisfação com a qualidade técnica alcançada, mas demonstra preocupação com a atualidade temática do filme. “Não tem nenhum aspecto que alguém pode dizer que isso não tem mais, acabou, era assim, agora não é”, afirma.
A conversa com o diretor revela não apenas os bastidores da restauração, mas também a melancolia de um cineasta que vê suas denúncias de cinco décadas atrás permanecerem dolorosamente atuais. Bodanzky relembra o processo de criação do filme, desde sua primeira viagem à Amazônia em 1968 como fotógrafo da revista Realidade até o encontro com Edna de Cássia, a jovem que interpretou Iracema e que, aos 65 anos, continua próxima ao diretor.
Confira, abaixo, os principais destaques da entrevista do Filmelier com o cineasta Jorge Bodanzky sobre Iracema: Uma Transa Amazônica.
Jorge, como foi feito o restauro de Iracema? Como foi esse processo e por que restaurar agora o filme nesses 50 anos?
Eu já sonhava com esse restauro quando eu sabia que o filme ia completar 50 anos. Puxa vida, a gente merecia uma cópia atualizada, porque a digitalização que foi feita na época, ainda de VHS, era precária. Havia esse desejo. E coincidiu com a mostra que o Instituto Moreira Salles fez do meu trabalho na época da ditadura. Aí eles resolveram também fazer, paralelamente à exposição – que é uma exposição de fotografia com trechos de filmes -, uma mostra dos meus filmes.
Quando a gente viu que grande parte dos filmes tinham digitalizações muito antigas, o Valtinho, o Moreira Salles, sugeriu: “então vamos restaurar”. Inicialmente pensaram só no Iracema, mas eu consegui incluir nesse restauro muitos outros filmes, principalmente O Terceiro Milênio. O pessoal se entusiasmou. A Alice Andrade, que comandou e organizou esse restauro, já tinha restaurado a obra do pai, do Joaquim Pedro. Então ela pegou gosto por isso e hoje ela é uma especialista em restauração.
Nós pesquisamos e conseguimos, com muita dificuldade, encontrar os negativos originais do Iracema na televisão alemã. Afinal, ele foi feito para um programa da TV alemã, e também os originais magnéticos do som. Isso permitiu um restauro fantástico. É como se o filme fosse rodado hoje. Foi um trabalho grande que levou algum tempo. Mas com a colaboração da Alemanha, do pessoal da televisão alemã que nos ajudou, conseguimos fazer o restauro do Iracema, do Terceiro Milênio e de outro filme que fiz com Orlando Senna, chamado Gitirana. Então fiquei muito feliz de poder incluir o restauro do filme dentro do âmbito dessa exposição.
Pessoalmente, não só profissionalmente, qual é a importância desse restauro para o senhor?
Olha, é muito importante, porque a gente sabe perfeitamente que está triste a atualidade desse filme. Tudo, tudo, tudo que é mostrado no filme hoje está pior. Não tem nenhum aspecto que alguém pode dizer que isso não tem mais, acabou, era assim, agora não é. Não é não. Tudo está aí e aumentado. E acho que a gente vive um momento muito, muito difícil.
O filme mostra que há 50 anos já passamos por isso. As gerações não fazem ideia do que era viver dentro de uma ditadura. Então, acho que trazer à tona os temas que esse filme mostra para serem discutidos hoje é uma grande contribuição que a gente como cineasta pode dar. Fico muito feliz – é uma expressão triste de dizer, mas contente – de saber que o filme é atual e que era muito importante ter o filme em qualidade para poder ser mostrado nos cinemas como vai acontecer agora.
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O filme causa uma melancolia muito grande, principalmente em tempos de PL da Devastação. Onde é que nós erramos?
Eu acho que o filme traz justamente isso, e é por isso que fico contente, entre aspas, de estar acontecendo, de poder ter elementos para enriquecer essa discussão importantíssima, né? Para a gente não repetir aquilo que já vivemos, entende? É um absurdo você repetir isso, em grande parte por falta de conhecimento mesmo.
Pensando hoje em Iracema e todo o trabalho que veio depois do seu cinema, como você vê que o filme influenciou o seu trabalho? Até sua percepção, sua entrada na região da Amazônia?
Bom, primeiro, Iracema não foi meu primeiro filme na Amazônia, foi meu primeiro filme como diretor, em colaboração com Orlando Senna. Mas eu já tinha ido pela primeira vez à Amazônia em 1968, quando era fotógrafo freelancer da revista Realidade, da editora Abril. Foi isso que me levou pela primeira vez à Amazônia.
Depois voltei algumas vezes fazendo câmera para correspondentes da TV alemã, e foi a partir daí que surgiu a ideia de fazer o Iracema. A partir de uma reportagem da revista Realidade, fiquei num posto de gasolina na beira da Belém-Brasília, em Paragominas. O repórter foi fazer a matéria e eu fiquei esperando no posto de gasolina, observando o movimento dos motoristas de caminhão, do que acontecia ali, das meninas que vinham na boleia dos caminhões, trocavam lá e seguiam adiante.
Durante o dia era um posto de abastecimento e à noite era um grande bordel. Eu falei: “se um dia eu contar a história dessa estrada, vai ser através desses dois personagens: do motorista de caminhão e da menina que se prostitui”. Levei seis anos para conseguir convencer um produtor da TV alemã a financiar o filme. Quando cheguei para fazer o filme, já tinha uma razoável vivência da Amazônia.
Como foi o processo de encontrar a Edna de Cássia, que interpretou Iracema?
Eu queria um personagem que tivesse o lado real daquilo que estava acontecendo. As meninas até hoje se prostituem ainda a partir dos 12, 13 anos. E eu sabia que não ia encontrar, dentro do meio de teatro, de cinema, um personagem assim, impossível. Ainda mais com aparência de caboclinha, tudo o que eu queria. Eu fui com o Orlando Senna para Belém e nos demos dez dias: “vamos tentar encontrar essa menina”. Não achava, não achava, não achava, até que no último dia, o motorista que nos levava disse: “mas o que vocês estão procurando?”. Eu me abri com ele e ele disse: “isso é fácil”.
Nos levou a um programa de auditório de rádio onde as meninas todas estavam matando aula e participando desse programa. Quando, junto com o Orlando Senna, entramos nesse auditório, tinha mais de cem garotas ali, [e vimos] dois olhinhos pretinhos lá no fundo. Falei: “olha, achamos a Iracema”. O Orlando foi falar com ela. Disse: “vamos tirar umas fotos”. Era pertinho do Mercado Modelo, “compro uma coisinha para você e a gente vai te fotografar”. E logo há uma barulheira, uma gritaria, uma senhora batendo nela. Mas o que estava acontecendo? Era a mãe que a pegou matando aula. Falei: “ótimo, tem mãe, achamos a mãe, achamos ela”. E aí foi combinado com a família, com a mãe, que a Conceição Senna seria uma espécie de mãe dela, ficou responsável por ela no filme e também foi quem a preparou para fazer esse trabalho.

E ela hoje, como está?
Ela hoje é uma senhora vovó, 65 anos, está ótima, mesma vozinha, mesma risada. Ela vem agora na segunda-feira para a pré-estreia. Já veio quando o filme foi exibido no Instituto Moreira Salles, ano passado.
Jorge, percebo hoje uma preocupação maior com restaurar e resgatar os filmes. Como você vê isso hoje? Sente que está acontecendo um momento de preocupação maior em preservar esses materiais?
Eu vejo como um movimento muito bom, muito interessante, porque nós temos uma história muito rica. E o cinema brasileiro foi sempre desprezado, bastante desprezado. Está se dando valor agora aos trabalhos que já foram feitos tempos atrás. São trabalhos importantíssimos, que fazem parte da nossa história.
Hoje, com a qualidade que você tem na televisão e no cinema, se você apresentar um filme como ele era apresentado há 30, 40, 50 anos atrás, as pessoas não vão ver. Um som ruim, uma imagem sem muita definição. O restauro permite que as pessoas hoje tenham oportunidade de ver o filme com a qualidade que ele foi feito na época.
Por exemplo, no caso do Iracema, eu tinha uma digitalização do filme, mas ainda na época do VHS. Muito, muito ruim, que não dá para você projetar hoje. E o restauro permitiu fazer o filme ficar novo. Então, você assiste o filme como se ele fosse rodado hoje. E assim acontece com todos os filmes que estão sendo restaurados. Hoje tem uma tecnologia que é cara, mas que permite, realmente, você transformar o filme como se ele fosse rodado hoje, com a qualidade do som e da imagem que os cinemas exigem hoje.
O maior desafio é justamente o dinheiro.
Exato. A tecnologia existe, o desejo existe, mas precisa de financiamento. Estão sendo feitos devagarzinho. A Cinemateca tem colaborado muito com isso.
Por fim, como você espera que Iracema vai estar daqui mais 50 anos?
Olha, sinceramente, não posso me preocupar daqui a 50 anos. Daqui a 50 anos, eu estarei longe. Eu deixo isso para os outros. Já tenho preocupação demais hoje.