Ver Jafar Panahi percorrendo o tapete vermelho e participando da coletiva de imprensa foi dos momentos mais emocionantes do 78º Festival de Cannes. Trinta anos depois de sua estreia no cinema, neste mesmo festival, com O Balão Branco (Irã, 1995), vencedor da Caméra D’Or para melhor primeiro longa-metragem, o cineasta iraniano volta ao palco internacional com It Was Just an Accident (Irã, França e Luxemburgo, 2025), favorito à Palma de Ouro neste ano.
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Em fevereiro de 2010, ele teve seu visto negado pelas autoridades iranianas para viajar para o Festival de Berlim, meses depois de encorajar os membros do júri do Festival de Montreal a usar echarpes verdes em apoio ao Movimento Verde Iraniano, que pedia a remoção do presidente Mahmoud Ahmadinejad.
Em março de 2010, ele foi preso, junto com sua mulher, sua filha e 15 de seus amigos, incluindo o cineasta Mohammad Rasoulof (de A Semente do Fruto Sagrado).
Em maio daquele ano, o Festival de Cannes deixou uma cadeira vazia representando sua ausência do júri presidido por Tim Burton, do qual Panahi deveria fazer parte. Na mesma edição do Festival de Cannes, durante a entrevista coletiva do filme Cópia Fiel (Irã, França, Itália, 2011), do iraniano Abbas Kiarostami (1940-2016), a mesa e o público foram informados de que Panahi tinha começado uma greve de fome, o que provocou o choro da atriz Juliette Binoche – presidente do júri do Festival de Cannes em 2025.
Em dezembro de 2010, Panahi recebeu a sentença de seis anos de prisão e 20 anos de proibição de fazer cinema e deixar o país. Apenas em 2011 a sentença foi revertida para prisão domiciliar, embora o impedimento de fazer filmes e viajar tenha permanecido.
Mesmo banido, Panahi continuou fazendo filmes. Isto Não é um Filme (Irã, 2011), exibido em sessão especial em Cannes, foi rodado dentro de sua casa. Cortinas Fechadas (Irã, 2013), vencedor do Urso de Prata de roteiro em Berlim, se passa em uma casa isolada. Táxi Teerã (Irã, 2015), Urso de Ouro em Berlim, traz o próprio diretor se passando por motorista de táxi e interagindo com habitantes de Teerã. Em Sem Ursos (Irã, 2022), Prêmio Especial do Júri em Veneza, Panahi se muda para a fronteira com a Turquia para dirigir um filme remotamente. Todos esses filmes foram apresentados em festivais sem a presença do cineasta. Ele também não recebeu nenhum dos prêmios pessoalmente.
It Was Just an Accident é o retorno de Jafar Panahi
Daí a emoção com sua vinda a Cannes para acompanhar It Was Just an Accident e falar pessoalmente com a imprensa depois de tantos anos. Recentemente, o governo suspendeu sua proibição de filmar. Foi assim que ele pôde realizar seu longa-metragem um pouco menos escondido, nos arredores do Irã. “Mesmo não estando banido, os filmes que quero fazer não necessariamente seguem os trâmites legais para filmar no Irã”, explicou Panahi na coletiva de imprensa oficial do festival. “Normalmente é preciso submeter seu roteiro ao ministério e, se você não conseguir a autorização, não pode fazer o filme. Mas eu tenho que continuar trabalhando da mesma forma (como estava fazendo durante a proibição), mesmo que seja um novo estágio da minha carreira.”
No filme, uma família viaja de carro à noite quando tem problemas mecânicos após um atropelar um cachorro. Eghbal (Ebrahim Azizi), sua mulher (Afssaneh Najmabadi) e a pequena filha do casal (Delmaz Najafi) precisam parar em uma oficina, comandada por Vahid (Vahid Mobasseri). O mecânico tem certeza de que aquele homem é seu torturador baseado no som de seus passos – Eghbal tem uma prótese na perna, e Vahid estava vendado o tempo inteiro na prisão – e resolve tomar uma atitude. Suas ações acabam reunindo outras vítimas do Estado: o livreiro Salar (Georges Hashemzadeh), a fotógrafa de casamentos Shiva (Mariam Afshari), o casal que ela está fotografando (Hadis Pakbaten e Majid Panahi) e Hamid (Mohamad Ali Elyasmehr).
It Was Just an Accident pincela momentos de humor em meio à tensão crescente, alternando comédia e tragédia como costuma ser na vida, ainda mais em um país sob um governo autoritário – O Agente Secreto (Brasil, França, Alemanha, 2025), de Kleber Mendonça Filho, também faz isso muito bem. Como no filme do brasileiro, os personagens ali enfrentam dilemas morais. Por exemplo, como evitar julgamentos apressados – será que aquele homem é mesmo aquele que eles conheceram na prisão, com os olhos vendados?. E também se vale a pena perder-se de si mesmo para se vingar.

É uma obra-prima de concisão, ritmo, mise-en-scène. Sem firulas, Panahi coloca o espectador na realidade surreal do Irã, mas também o confronta enquanto ser humano.
Se ganhar a Palma de Ouro – e a chance é muito grande –, Panahi completará a trifeta dos três principais festivais do mundo. Ele ganhou o Leão de Ouro com O Círculo (Irã, Itália, Suíça, 2000) e o Urso de Ouro com Táxi Teerã, além de muitos outros prêmios importantes, como o Leopardo de Ouro com O Espelho (Irã, 1997) e o Grande Prêmio do Júri em Berlim com Fora de Jogo (Irã, 2006).
A experiência de Jafar Panahi na prisão informa It Was Just an Accident
Na entrevista coletiva, Panahi disse que seus filmes são inspirados pelo ambiente em que se encontra. “Uma vez que você é mandado para a prisão, inevitavelmente você é influenciado e impactado pelo que vive lá e o que vê.” Na última prisão, em 2022, ele ficou em uma cela grande, com várias outras pessoas, e a maioria não estava lá por razões políticas, como ele. Suas histórias acabaram no novo filme.
Panahi fez um filme provocativo apesar de tudo isso e não sabe como vai ser sua volta a Teerã. No momento, um de seus corroteiristas está na prisão. “Conseguimos terminar a filmagem em paz, mas, assim que ouviram que o filme tinha sido selecionado para Cannes, particularmente nos últimos 15 dias, a situação ficou mais complicada. Muitos membros da equipe e do elenco foram chamados para prestar depoimento. Meu diretor de fotografia e eu mesmo fomos até o local do interrogatório, porque não queríamos que eles estivessem sozinhos. Então houve muita pressão sobre eles. Foram ameaçados. Mas eu sabia nós tínhamos a vantagem pois o filme já estava pronto e não havia nada que eles pudessem fazer.”
O cineasta minimizou a preocupação com seu destino em sua volta ao Irã e disse que não pretende deixar o país, ao contrário de alguns compatriotas, incluindo seu amigo Rasoulof, hoje na Alemanha. “Eu me comporto como outros iranianos, meu caso não é especial. As mulheres iranianas são proibidas de sair sem véu, mas elas saem da mesma maneira. E se arriscam fazendo isso. Não estou fazendo nada mais heroico do que todos os iranianos fazem. Quando terminar aqui, volto para o Irã. Assim que chegar, vou pensar sobre o meu próximo filme.”
A atriz Maryam Afshari ecoou suas palavras. “Não sabemos o que vai acontecer. Mas o Irã é nosso país, e temos de lutar para que nosso país melhore e progrida. Temos de fazer o máximo para isso. Por isso não importa o que aconteça conosco, o que é realmente importante é o destino do país.”
Panahi descreveu a situação como absurda e surreal. “Como podem jogar um artista na prisão sem entender o que isso significa? Quando você joga um artista na prisão, você dá ideias a ele. Abre um novo mundo para aquele artista. Não fui eu que fiz isso, foi a República Islâmica do Irã que me jogou na prisão, foi a República Islâmica do Irã que fez este filme. Ela deveria entender que, ao jogar um artista na prisão, precisa arcar com as consequências. Graças à tecnologia, nenhuma instância de poder pode impedir um artista de fazer seu trabalho. Mesmo em uma cela o artista vai continuar se expressando. Mesmo em segredo. Quando um país se comporta dessa maneira, não vai colher outros frutos que não esse. Como você joga um cantor na prisão? Você acredita que alguém pode ser jogado na prisão no Irã apenas por cantar uma música ou por tuitar? É difícil de entender. Meu corroteirista está preso. Mas tenho certeza de que ele vai sair da prisão com muitos roteiros em sua cabeça.”
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