Antes mesmo do anúncio da seleção do 78º Festival de Cannes, era grande o burburinho em torno de Sound of Falling, segundo longa-metragem da alemã Mascha Schilinski e o primeiro da competição. A expectativa foi confirmada com a exibição oficial, na quarta-feira (14). Ao intercalar as histórias de quatro meninas que vivem em uma fazenda no norte da Alemanha, em épocas diferentes, a diretora tece uma rede complexa de memórias, traumas e os desafios e as sutilezas da existência feminina. É uma obra impressionante, ainda mais considerando que o primeiro filme da cineasta foi feito ainda na faculdade de cinema.
Essa fazenda fica na região de Altmark, que sempre foi majoritariamente rural e que foi palco de momentos decisivos da conturbada história alemã. O Rio Elba, que praticamente serve como uma das fronteiras de Altmark, também estabelece o limite do alcance do Exército Vermelho na Segunda Guerra Mundial. Assim, o local ficou atrás da Cortina Vermelha na divisão entre Alemanha Oriental e Ocidental e, depois da reunificação, começou a receber pessoas de Berlim em busca de tranquilidade.
Mas essa história com “h” maiúsculo não contempla as mulheres daquele lugar – e, sinceramente, de nenhum outro. O existir delas costuma ser apagado pela falta de registro, pelo desinteresse em torná-las personagens com enredo.
Uma história contada pelos silêncios
Sound of Falling surgiu a partir da foto de três mulheres sem nome, sem história, sem ocupação definida que Schilinski e a roteirista Louise Peter encontraram esquecida na propriedade, onde se refugiaram para escrever histórias. As duas se inspiraram naquela imagem de mulheres anônimas para criar fragmentos de vida, filtrados pela memória, de Alma (Hanna Heckt), Erika (Lea Drinda), Angelika (Lena Urzendowsky) e Lenka (Laeni Geiseller) ao longo de cem anos.
A primeira cena é muito representativa do tom de Sound of Falling: uma jovem movimenta-se com a ajuda de muletas. Em princípio, ela parece não ter uma das pernas. Mas, na verdade, o filme revela que ela prende a perna sob o vestido para ter a sensação de viver como o homem deitado em uma cama, que teve parte do membro amputado. A sequência continua, intrigante e misteriosa, sem explicações de que época é aquela, quem é aquele homem, por que ele não tem sua perna e, principalmente, quem é aquela mulher. É um aviso de que Schilinski não está disposta a ser didática, mas a transmitir sensações de invisibilidade, inadequação, tédio, violência, rebeldia oprimida que passam de geração a geração de mulheres.
As histórias dessas quatro meninas – e de outras mulheres à sua volta – são alinhavadas de maneira surpreendente, sem aviso, em um vaivém entre passados que desnorteia. Nem sempre o espectador sabe quem é a personagem na tela ou exatamente em que época está. Cada uma das personagens tem momentos específicos.
Personagens que reverberam no tempo
Alma vê o mundo por buracos de fechadura e frestas, porque as portas e janelas sempre estão fechadas. Erika sofre violência física e nem sempre seus impulsos são compreendidos. Angelika é julgada enquanto os homens podem transgredir à vontade. Lenka tem dificuldades de lidar com seus sentimentos.
Há evoluções de uma época para outra, mas, no fundo, pouca coisa muda. Mas juntas elas se espelham e mostram que, seja 100, 80, 40 ou 10 anos atrás, mulheres são silenciadas, julgadas, oprimidas.
O filme é notável em transmitir pequenas sensações, usando pontos de vista bastante subjetivos para mostrar a relação dessas meninas com seus universos particulares e os mundos com que têm de lidar. Alma olha para baixo para ver os detalhes do vestido preto de que tem muito orgulho e pouca compreensão do que significa. Lenka estranha o primeiro olhar sobre seu corpo pelo amigo de seu pai.
Schilinski alterna esse ponto de vista subjetivo com um olhar que parece ser da personagem sobre si mesma, como uma experiência extracorpórea ou, talvez, dela mesma em outra época revisitando o que viveu. Há algo de fantasmagórico nas imagens, com as personagens sendo espectros que atravessam as épocas e assombram outras eras e chamam o espectador a ser testemunha, não através da tela, mas como se ele estivesse naqueles corpos.
Sound of Falling é ambicioso como só os homens em segundos filmes costumam ter o direito de ser e revelam uma nova voz interessantíssima do cinema mundial. É só o primeiro filme da competição, mas difícil de imaginar que saia de Cannes sem algum prêmio.
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