Júri de Cannes não surpreende
No Festival de Cannes, dá para saber que o júri errou quando um filme que não ganhou a Palma de Ouro – pior, não levou nem um prêmio oficial – recebe mais aplausos do que o grande vencedor da noite. E foi isso que aconteceu na noite do sábado (25.5), na cerimônia de premiação da 77ª edição, estragando um pouco o clima da festa.
Não é culpa do filme que levou a Palma de Ouro, Anora, uma deliciosa comédia romântica do norte-americano Sean Baker, grande diretor de filmes como Tangerine (2015) e Projeto Flórida (2017). É uma produção impossível de desgostar, praticamente perfeita, humanista, com personagens cativantes, ótimas atuações, roteiro redondo. É ótimo cinema e merecia algum prêmio.
Mas a Palma de Ouro precisa ir um pouco além quando a seleção permite. O júri presidido por Greta Gerwig tinha nas mãos uma obra cinematográfica de peso político e artístico como A Semente do Fruto Sagrado (The Seed of the Sacred Fig), do iraniano Mohammad Rasoulof, e deixou passar a oportunidade de premiá-lo com a Palma de Ouro.
Seria a chance de fazer história, provocar discussão para além da tela, reconhecer a luta, a realidade, a visão de mundo e o cinema do outro. Acabou apenas reforçando a impressão de que presidentes de júri norte-americanos premiam filmes norte-americanos, enxergando apenas o cinema que conhecem, que é o cinema dominante no mundo.
Para piorar, o júri não deu um Grande Prêmio do Júri (uma espécie de segundo lugar), um Prêmio do Júri (o terceiro) ou mesmo um troféu de direção para Rasoulof. Decidiu que ia criar um prêmio especial para o filme do iraniano, um prêmio de consolação por ter rodado The Seed of the Sacred Fig escondido e tido a coragem de denunciar a brutalidade do governo iraniano.
Ou seja, para o júri o filme não merecia um prêmio oficial, dentro da esfera do cinema e do Festival de Cannes, mas algo extraoficial, extracinema, extra Cannes. Rasoulof saiu da cerimônia apenas com um papel, um diploma de obrigado pelo esforço.
Sinceramente, era melhor não ter dado nada. Ficou parecendo apenas um ato condescendente de quem provavelmente jamais vai ter de fazer cinema – bom cinema, para deixar claro – sobre mulheres sendo presas e mortas por protestarem contra a obrigação de usar véu, nessas condições, arriscando sua vida no processo.
A decisão do júri causou primeiro uma confusão na hora do anúncio e uma decepção claramente percebida na transmissão pela televisão, bem como na sala de imprensa.
Emilia Pérez, a outra polêmica na premiação de Cannes
Outro ponto polêmico foi a premiação dupla de Emilia Pérez, de Jacques Audiard, que saiu com o Prêmio do Júri e melhor interpretação feminina. Em Cannes, dada a alta qualidade da seleção, costuma-se evitar premiar duas vezes o mesmo filme. Emilia Pérez é uma mistura arriscada que deu muito certo e merecia demais ser premiado. Mas não precisava ser duas vezes.
O júri decidiu por um prêmio para o elenco feminino, formado por Zoe Saldaña, Karla Sofía Gascón, Selena Gomez e Adriana Paz, em vez de destacar uma das atrizes. De maneira emblemática, o elenco de Emilia Pérez foi representado na cerimônia por Karla Sofía Gascón, a primeira atriz trans a ganhar esse troféu em Cannes. Ela emocionou com seu discurso, dizendo que sabia que ia ler muitas mensagens de ataque nas redes sociais, mas que só queria falar para essas pessoas: Melhorem.
A verdade é que o júri reconheceu os filmes certos – Anora, Tudo o que Imaginamos como Luz, de Payal Kapadia, vencedor do Grande Prêmio do Júri, Emilia Pérez, A Substância, troféu de melhor roteiro, Grand Tour, de Miguel Gomes, e A Semente do Fruto Sagrado foram muito bem comentados. Tipos de Gentileza não tinha por que ser premiado, mas Jesse Plemons realmente é um grande ator e não havia tantas performances masculinas de destaque. Bird, de Andrea Arnold, e Caught by the Tides, de Jia Zhangke, não fariam feio nessa lista.
Mas ficou a sensação de que o júri atribuiu os prêmios errados aos filmes certos.
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